Em "Declínio" os intelectuais preocupados com outras questões,
dão pouco - ou nenhum - valor à família convencional, e principalmente aos
filhos. Rémy quase não fala dos filhos e Pierre deixa claro sua atitude egoísta
e sua opção por não ser pai. Daí que "Invasões bárbaras" começa com
Rémy muito doente, hospitalizado, e sua ex-esposa (Louise) tendo que ligar para
o filho Sébastien, que mora em Londres, para que venha cuidar do pai. Parece um
"tapa de luvas" e realmente é, Rémy tem que lidar com um filho que
não respeita e admira, que nunca leu um livro na vida e é um capitalista
selvagem; o filho, por outro lado, nega tudo que venha do pai, como seu
espírito socialista, seu estilo de vida. O que resultará disso é meio óbvio e
bem parecido com "Peixe grande e suas histórias maravilhosas", ambos
centrados na relação desastrada de pai e filho, o pai está doente, em
estado terminal, e o filho volta para resgatar, para dar a última chance. Claro
que grande parte deste resgate se deve às mães, de ambos os filmes, e em
"Invasões" Louise dá um show quando o filho, nem um pouco disposto a
cuidar do pai (quem pode culpá-lo?!) lhe descreve toda a atenção que o pai lhe
deu, as fraldas que trocou, quando o embalou na infância, cuidou dele nas
doenças, enfim, acho que só comprova a teimosia masculina, que muitas vezes nem
a paternidade pode dar conta.
Mas durante o filme ocorrem algumas transformações, e o filho de Rémy,
apesar de nem um pouco voltado para a vida acadêmica, se mostra um filho dedicado e
faz de tudo para que seu pai tenha conforto e alegrias, é bonito de ver; claro
que com a quantidade de dinheiro que tem fica mais fácil ser generoso, mas não
diminui seu gesto. A cena final dos dois é lindíssima, quando Rémy diz ao
filho: "sabe o que lhe desejo? Um filho como o meu!".
Contudo "Invasões" é muito além disso, é um filme belíssimo,
muito sensível e, outrossim, extremamente pessimista, em todos os sentidos. Se
em "Declínio" vemos um grupo de amigos "intelectualmente
tediosos", com seus valores e certezas, em "Invasões" percebemos
o quanto a velhice pode ser cretina e jogar na cara um monte de certezas; o melhor
exemplo é Pierre, que era um solteiro inveterado, que amava amar as mulheres,
não queria ter filhos, centrado na sua inteligência, e agora é casado com uma
jovem, burra e fútil, tem duas filhas pequenas e se submete aos desejos da
mulher, é outro homem, mais desencantado. O mesmo com Diane, que continua
fervorosa sexualmente, mas se afastou das filhas, e até com Dominique, que
desistiu dos homens. O único que parece melhor é o querido do Claude, que já em
"Declínio" era o mais boa praça e agora mora em Roma, é bem sucedido
profissionalmente e no amor.
Mas as desesperanças não estão apenas ali, nos que ditavam certezas e
arrogâncias no primeiro filme, os jovens também não oferecem nenhuma esperança
no futuro (como diz Rémy "não entendemos o passado, como podemos prever o
futuro?”). Finalmente a própria morte, na qual gira todo o filme, é uma desilusão, Rémy lida com sinceridade sobre a perspectiva de sua morte, e
nas conversas com Nathalie (filha de Diane que lhe injeta heroína) estão as
melhores reflexões:
"- É paradoxal, quando envelhecemos é que nos
apegamos à vida... Me restam 20 anos, 15 anos, 10... Quando sabemos que é a
última vez que fazemos alguma coisa, é a última vez que compro um carro, a
última vez que vejo Gênova, Barcelona [...] Não quero deixar a vida. Não pode
imaginar como a amei.
- E o que tanto amou?
- Tudo. O vinho, os livros, a música, as mulheres,
principalmente as mulheres.
- Mas não é a sua vida atual que não quer deixar. É
a sua vida passada. E essa já está morta."
Se em "Declínio" a origem do nome está atrelada à questão da
felicidade, em "Invasões" quem explica é Alain (em sua única aparição
no filme), quando está na TV dando uma entrevista sobre 11 de setembro: "Historicamente
o número de mortos no ataque é insignificante, para citar um exemplo americano
morreram 50 mil pessoas na batalha de Gettysburg. Mas o que é significativo,
como diriam meus antigos professores, é que, dessa vez, o coração do império foi
atingido. Nos conflitos anteriores, Coréia, Vietnã, a Guerra do Golfo, o
império havia conseguido manter os bárbaros além de seus limites, de suas
fronteiras. Nesse sentido talvez nos lembremos, e insisto no talvez, de setembro
de 2001 como o começo das grandes invasões bárbaras."
E é irônico que o império cujo declínio é anunciado em 1986 (17 anos
antes de "Invasões") é aquele que tem a melhor infraestrutura de
saúde para cuidar de Rémy - apesar de cara, o que não é problema para o filho -
e ambos têm que cruzar a fronteira para o tratamento (bem diferente de Sicko,
do Michael Moore, onde as pessoas fazem o caminho inverso, atravessam dos EUA
para o Canadá).
E apesar de ser um filme belo é também um filme triste, um filme de
saudade. As cenas finais, gravadas na mesma casa de campo onde foi gravado
"Declínio" mostra como foi valioso reunir os mesmos atores para fazer
esse filme, tanto tempo depois. Apesar de todo pessimismo, se existe alguma
esperança ela está na família, ou mais que isso, na amizade.
Invasões bárbaras (Les invasions barbares, Canadá, 2003) ****
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