domingo, 10 de março de 2013

69° - "Invasões bárbaras"

Em "Declínio" os intelectuais preocupados com outras questões, dão pouco - ou nenhum - valor à família convencional, e principalmente aos filhos. Rémy quase não fala dos filhos e Pierre deixa claro sua atitude egoísta e sua opção por não ser pai. Daí que "Invasões bárbaras" começa com Rémy muito doente, hospitalizado, e sua ex-esposa (Louise) tendo que ligar para o filho Sébastien, que mora em Londres, para que venha cuidar do pai. Parece um "tapa de luvas" e realmente é, Rémy tem que lidar com um filho que não respeita e admira, que nunca leu um livro na vida e é um capitalista selvagem; o filho, por outro lado, nega tudo que venha do pai, como seu espírito socialista, seu estilo de vida. O que resultará disso é meio óbvio e bem parecido com "Peixe grande e suas histórias maravilhosas", ambos centrados na relação desastrada de pai e filho, o pai está doente, em estado terminal, e o filho volta para resgatar, para dar a última chance. Claro que grande parte deste resgate se deve às mães, de ambos os filmes, e em "Invasões" Louise dá um show quando o filho, nem um pouco disposto a cuidar do pai (quem pode culpá-lo?!) lhe descreve toda a atenção que o pai lhe deu, as fraldas que trocou, quando o embalou na infância, cuidou dele nas doenças, enfim, acho que só comprova a teimosia masculina, que muitas vezes nem a paternidade pode dar conta.
Mas durante o filme ocorrem algumas transformações, e o filho de Rémy, apesar de nem um pouco voltado para a vida acadêmica, se mostra um filho dedicado e faz de tudo para que seu pai tenha conforto e alegrias, é bonito de ver; claro que com a quantidade de dinheiro que tem fica mais fácil ser generoso, mas não diminui seu gesto. A cena final dos dois é lindíssima, quando Rémy diz ao filho: "sabe o que lhe desejo? Um filho como o meu!".
Contudo "Invasões" é muito além disso, é um filme belíssimo, muito sensível e, outrossim, extremamente pessimista, em todos os sentidos. Se em "Declínio" vemos um grupo de amigos "intelectualmente tediosos", com seus valores e certezas, em "Invasões" percebemos o quanto a velhice pode ser cretina e jogar na cara um monte de certezas; o melhor exemplo é Pierre, que era um solteiro inveterado, que amava amar as mulheres, não queria ter filhos, centrado na sua inteligência, e agora é casado com uma jovem, burra e fútil, tem duas filhas pequenas e se submete aos desejos da mulher, é outro homem, mais desencantado. O mesmo com Diane, que continua fervorosa sexualmente, mas se afastou das filhas, e até com Dominique, que desistiu dos homens. O único que parece melhor é o querido do Claude, que já em "Declínio" era o mais boa praça e agora mora em Roma, é bem sucedido profissionalmente e no amor.
Mas as desesperanças não estão apenas ali, nos que ditavam certezas e arrogâncias no primeiro filme, os jovens também não oferecem nenhuma esperança no futuro (como diz Rémy "não entendemos o passado, como podemos prever o futuro?”). Finalmente a própria morte, na qual gira todo o filme, é uma desilusão, Rémy lida com sinceridade sobre a perspectiva de sua morte, e nas conversas com Nathalie (filha de Diane que lhe injeta heroína) estão as melhores reflexões:
"- É paradoxal, quando envelhecemos é que nos apegamos à vida... Me restam 20 anos, 15 anos, 10... Quando sabemos que é a última vez que fazemos alguma coisa, é a última vez que compro um carro, a última vez que vejo Gênova, Barcelona [...] Não quero deixar a vida. Não pode imaginar como a amei.
- E o que tanto amou?
- Tudo. O vinho, os livros, a música, as mulheres, principalmente as mulheres.
- Mas não é a sua vida atual que não quer deixar. É a sua vida passada. E essa já está morta."
Se em "Declínio" a origem do nome está atrelada à questão da felicidade, em "Invasões" quem explica é Alain (em sua única aparição no filme), quando está na TV dando uma entrevista sobre 11 de setembro: "Historicamente o número de mortos no ataque é insignificante, para citar um exemplo americano morreram 50 mil pessoas na batalha de Gettysburg. Mas o que é significativo, como diriam meus antigos professores, é que, dessa vez, o coração do império foi atingido. Nos conflitos anteriores, Coréia, Vietnã, a Guerra do Golfo, o império havia conseguido manter os bárbaros além de seus limites, de suas fronteiras. Nesse sentido talvez nos lembremos, e insisto no talvez, de setembro de 2001 como o começo das grandes invasões bárbaras."
E é irônico que o império cujo declínio é anunciado em 1986 (17 anos antes de "Invasões") é aquele que tem a melhor infraestrutura de saúde para cuidar de Rémy - apesar de cara, o que não é problema para o filho - e ambos têm que cruzar a fronteira para o tratamento (bem diferente de Sicko, do Michael Moore, onde as pessoas fazem o caminho inverso, atravessam dos EUA para o Canadá).
E apesar de ser um filme belo é também um filme triste, um filme de saudade. As cenas finais, gravadas na mesma casa de campo onde foi gravado "Declínio" mostra como foi valioso reunir os mesmos atores para fazer esse filme, tanto tempo depois. Apesar de todo pessimismo, se existe alguma esperança ela está na família, ou mais que isso, na amizade.
Invasões bárbaras (Les invasions barbares, Canadá, 2003) ****

Nenhum comentário:

Postar um comentário